terça-feira, 20 de setembro de 2011

MULHERES ETUPRADAS NAS GUERRAS E CONFLITOS

A mais covarde das armas de guerraATROCIDADE
 A Justiça internacional avançou – pouco – na punição da violência sexual contra mulheres em conflitos. Um dos maiores desafios é quebrar o silêncio das vítimas
Letícia Sorg
Vítimas de violência sexual em abrigo de Goma, na República Democrática do Congo. O país é um dos mais perigosos do mundo para as mulheres
Aviolência sexual também é uma arma. Foi usada em conflitos entre tribos, comunidades e nações desde os primórdios da humanidade. Relatos bíblicos comprovam a antiguidade da prática de tomar a mulher do derrotado: “Quando, na guerra contra os inimigos (...) e tu os fizeres cativos, se vires uma mulher bonita, da qual te enamores, e a queira tomar por esposa, tu introduzirás em tua casa” (Deuteronômio, 21). O que a Bíblia deixa escapar é que o estupro durante a guerra pouco ou nada tem a ver com desejo sexual de soldados longe de casa. Numa região de conflito, a violência sexual é um ato de poder, uma arma de guerra, covarde, mas tão ou mais eficiente do que a de fogo. “Ela traz danos de longo prazo, por isso é tão usada por exércitos e milícias”, diz Joeyta Bose, coordenadora em Londres da ONG Women for Women, que dá cursos de capacitação profissional para mulheres em zonas de conflito. “O estupro desumaniza as vítimas e quebra a comunidade.”
Duas décadas depois do conflito na ex-Iugoslávia, muitos habitantes ainda lidam com os efeitos da violência sexual. Durante a guerra na Bósnia-Herzegovina, no início dos anos 1990, entre 20 mil e 50 mil mulheres foram estupradas. Na maioria, bósnias muçulmanas. Muitas engravidaram de agressores sérvios – e foram obrigadas a gerar os bebês. Essas crianças cresceram para formar uma geração de jovens que não apenas desconhecem os pais, mas sabem que eram inimigos que agrediram suas mães. O estupro em massa e a escravidão sexual de mulheres na Bósnia levaram ao julgamento, em 2001, de três militares sérvios. O Tribunal Criminal Internacional criado para o conflito condenou-os por crimes contra a humanidade. Outras 26 pessoas também receberam penas por acusações semelhantes.
Pela segunda vez o estupro era considerado mais que uma violação dos costumes de guerra. Em 1998, o tribunal criado para Ruanda considerou o estupro um instrumento de genocídio, além de um crime contra a humanidade, na condenação de 11 pessoas. No dia 24 de junho, a mesma corte condenou à prisão perpétua Pauline Nyiramasuhuko. Ex-ministra da Família e das Mulheres de Ruanda, Pauline foi considerada culpada de genocídio e crimes contra a humanidade por, entre outras ações, incentivar a agressão, o estupro e a morte de centenas de mulheres da etnia tútsi. Estima-se que, nos 100 dias do conflito em Ruanda, em abril de 1994, entre 250 mil e 500 mil mulheres tenham sido violentadas.
As condenações na ex-Iugoslávia e em Ruanda são consideradas exemplares na punição da violência sexual em guerras. “Desde a Convenção de Haia, no início do século XX, das convenções de Genebra e do estabelecimento do Tribunal Internacional, a violência sexual era reconhecida como crime contra a humanidade quando feita de forma disseminada e sistemática”, diz Widney Brown, diretora de Direito e Política da Anistia Internacional. “Mas, apesar disso, o número de processos se manteve muito baixo.” Nos tribunais de Tóquio e de Nuremberg, que julgaram crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, o estupro nem foi mencionado. Estima-se, porém, que 2 milhões de mulheres tenham sido estupradas na Alemanha e dezenas de milhares tenham sido submetidas à escravidão sexual na Ásia.
A natureza do crime sexual dificulta não apenas a obtenção de justiça, mas a compreensão de seus efeitos. Para isso, é vital que seja dada voz às vítimas, missão abraçada por Rochelle Saidel, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero da Universidade de São Paulo  Rochelle desafiou o silêncio e o estigma para retratar o sofrimento de mulheres em meio a um dos mais violentos episódios da história, o Holocausto. Uma das organizadoras do livro Sexual violence against Jewish women during the Holocaust (Violência sexual contra mulheres judias durante o Holocausto), Rochelle diz que a violência sexual permaneceu um tabu nos registros da tragédia. Segundo ela, o tema não faz parte da maioria dos relatos do Holocausto porque, além da dificuldade de muitas mulheres de se abrir, foi seguidamente ignorado por entrevistadores. Mas o uso dessa arma foi constante. Além dos trabalhos forçados nos campos de concentração e do uso de câmaras de gás, os estupros e a escravidão sexual fizeram parte dos horrores. Uma lei que proibia relações sexuais entre judeus e arianos não foi capaz de proteger as mulheres judias. A proibição, na verdade, representava um risco ainda maior. Para evitar problemas com a lei, muitos estupradores matavam suas vítimas.
HOLOCAUSTO
Mulheres no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Muitas vítimas de estupro por nazistas foram assassinadas
Quase 70 anos depois, em novos conflitos, novos dramas são registrados. No início da atual guerra civil na Líbia, uma mulher denunciou publicamente a violência de soldados leais ao líder Muammar Khadafi. Eman al-Obeidi entrou em um hotel em Trípoli e, aos gritos, afirmou ter sido presa e estuprada. Apenas, segundo ela, por ser de uma região rebelde. O caso, seguido de outras denúncias, levou a secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, a pedir uma investigação sobre a suposta prática de violência sexual “em larga escala” por forças de Khadafi. No dia 17 de junho, o Tribunal Penal Internacional (TPI) pediu a prisão do ditador, acusado da morte e perseguição de civis. A Anistia Internacional afirma não haver evidências da prática sistemática de violência sexual na Líbia, mas o promotor do TPI, Luis Moreno-Ocampo, diz ter informações sobre uma “política de estuprar quem é contra o governo”.
Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente da República Democrática do Congo, pode ser o próximo entre as poucas autoridades já condenadas por violência sexual. Acusado de permitir que suas tropas estuprassem mulheres durante a guerra civil no país, no final dos anos 1990, ele começou a ser julgado no fim do ano passado por crimes contra a humanidade. Segundo um relatório divulgado no último dia 6 pela agência ONU Mulher, mais de 200 mil casos de violência sexual foram registrados desde 1996 só no leste do Congo. Depois da guerra civil, o quadro não melhorou muito: o Congo é considerado o segundo lugar mais perigoso do mundo para as mulheres, atrás apenas do Afeganistão.
Os conflitos que envolvem as ideias de etnia, raça e tribo costumam ser cruéis com mulheres e meninas. Como são importantes para a perpetuação do grupo, tornam-se valiosas presas. Aos olhos do inimigo, perdem sua identidade humana e são reduzidas a alvos militares. Dar justiça e voz a essas vítimas significa lhes devolver parte da dignidade roubada pela guerra.

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